ÖSão João del Rey
Cheguei de Belo Horizonte há algumas horas. Caminhei oir estas ruas sem destino e sem pressa. Queria sentir este ambiente tão diferente e tão pouco conhecido por mim . Cejo este casario todo a minha volta como se tivesse saído dos livros de história. As pessoas parecem personagens e os locais se parecem com cenários.
A igreja Matriz e as pontes de pedra neste sol quente e envolvente mos desacerelam os passos. Sentei-me na beira da calçada como muitas outras pessoas e senti que era o momento de te escreber. Sei que quando parti estavas um pouco decepcionada por ter feito esta viajem, mas não estava me afastando de ti. Não poderia te deixar, pois estássempre em todas as coisas que me orioinho a fazer.
São João del Rey, 9 de Junho de 1981
Xomo vai Princesa? Espero que estas borboletas lje tragam sorte. São João é como se espera. Amtigo, não velho e muito, muito pobre. Há coisas bem folclóricas por aqui, como por esemplo o Jornal do Poste, que é um jornal mural datilografadp e pregado num poste. As carroças de burropelas ruas e poucos carros. Que mais? As ruas são de paralelepípedos e algumas de pedra em terra batida. Estpu sentado em frente a Matriz na calçada, por issp a letra sai tão ruim.
Precisava dizer umas tantas coisas para você, mas acho que prefiro dize-las pessoalmente. Como têm sido os seus dias aí? Bem, mande um abraçp ao Ricardo e diga que espero encontrá-lo firme quando chegar. From São João del Rey whith love, tours.
Rafael
Marília de Dirceu
I
1 Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
2 que viva de guardar alheio gado,
3 de tosco trato, de expressões grosseiro,
4 dos frios gelos e dos sóis queimado.
5 Tenho próprio casal e nele assisto;
6 dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
7 das brancas ovelhinhas tiro o leite
8 e mais as finas lãs, de que me visto.
9 Graças, Mar flua bela,
10 graças à minha estrela!
11 Eu vi o meu semblante numa fonte:
12 dos anos inda não está cortado;
13 Os pastores que habitam este monte
14 respeitam o poder do meu cajado.
15 Com tal destreza toco a sanfoninha,
16 que inveja até me tem o próprio Alceste:
17 ao som dela concerto a voz celeste,
18 nem canto letra que não seja minha.
19 graças, Marília bela,
20 graças à minha estrela!
II
A minha amada
é mais formosa
que branco lírio,
dobrada rosa,
que o cinamomo,
quando matiza
co’a folha a flor:
Vênus não chega
ao meu amor.
Vasta campina,
de trigo cheia,
quando na sesta
co vento ondeia,
ao seu cabelo,
quando flutua,
não é igual.
Tem a cor negra,
mas quanto val!
(...)
III
(...)
Aqui um regato
corria, sereno,
por margens cobertas
de flores e feno;
à esquerda se erguia
um bosque fechado;
e o tempo apressado,
que nada respeita,
já tudo mudou.
São estes os sítios?
São estes; mas eu
o mesmo não sou.
Marília, tu chamas?
Espera, que eu vou.
IV
Tu não verás, Marília, cem cativos
tirarem o cascalho e a rica terra,
ou dos cercos dos rios caudalosos,
ou da minada serra.
Não verás separar ao hábil negro
do pesado esmeril a grossa areia,
e já brilharem os granetes de oiro
no fundo da batéia.
Não verás derrubar os virgens matos,
queimar as capoeiras inda novas,
servir de adubo à terra a fértil cinza,
lançar os grãos nas covas.
Não verás enrolar negros pacotes
das secas folhas do cheiroso fumo;
nem espremer entre as dentadas rodas
da doce cana o sumo.
(...)
V
Com os anos, Marília, o gosto falta,
e se entorpece o corpo já cansado:
triste, o velho cordeiro está deitado,
e o leve filho, sempre alegre, salta.
A mesma formosura
é dote que só goza a mocidade:
rugam-se as faces, o cabelo alveja,
mal chega a longa idade.
Que havemos de esperar Marília bela?
que vão passando os florescentes dias?
As glórias que vêm tarde, já vêm frias,
e pode, enfim, mudar-se a nossa estrela.
Ah! não, minha Marília,
aproveite-se o tempo, antes que faça
o estrago de roubar ao corpo as forças,
e ao semblante a graça!
7. O texto V, dos mais belos das liras, manifesta a atitude clássica, o carpe diem (= “aproveita o dia”). Na primeira estrofe, o poeta expressa a consciência da fugacidade do tempo. Na estrofe seguinte, propõe à Marília a fruição dos prazeres da vida, antes que o tempo fizesse o estrago de “roubar ao corpo [do poeta] as forças, e ao semblante [de Marília], a graça.
8. Nas liras escritas no cárcere, predomina o lirismo lamuriento, pré-romântico, mas submetido ainda à disciplina e sobriedade neoclássicas. Nas últimas liras, nota-se que, ainda quando nem os céus acudiam o poeta em suas atribulações, a expressão de suas dores é contida:
VI
Porém se os justos céus, por fins ocultos,
em tão tirano mal me não socorrem,
verás então que os sábios,
bem como vivem, morrem.
Eu tenho um coração maior que o mundo,
tu, formosa Marília, bem o sabes:
um coração, e basta,
onde tu mesma cabes.
VII
(...)
Os seus compridos cabelos,
que sobre as costas ondeiam,
são que os de ApoIo mais belos,
mas de loura cor não são.
Têm a cor da negra noite,
e com o branco do rosto
fazem, Marília, um composto
da mais formosa união.
(...)
Aqui tem cabelos loiros:
VIII
(...)
Os teus olhos espalham luz divina,
a quem a luz do sol em vão se atreve;
papoila ou rosa delicada e fina
te cobre as faces, que são cor da neve.
Os teus cabelos são uns fios d’ouro;
teu lindo corpo bálsamos vapora.
(...)
IX
Ama a gente assisada (1) (1) ajuizada
a honra, a vida, o cabedal tão pouco,
que ponha uma ação destas (2)(2) a Inconfidência
nas mãos dum pobre, sem respeito e louco? (3) (3) Tiradentes
E quando a comissão lhe confiasse,
não tinha pobre soma,
que por paga ou esmola lhe mandasse?
X
O mesmo autor do insulto
mais a riso do que a terror me move;
deu-lhe nesta loucura,
podia-se fazer Netuno ou Jove.
A prudência é tratá-lo por demente;
ou prendê-lo, ou entregá-lo,
para dele zombar a moça gente.